O Elogio da Partilha
“They may forget what you said but they will never forget how you made them feel.” – Carl Buechner
Lembro-me de forma cristalina do meu professor de Filosofia do 10º ano. Não porque a matéria era mais ou menos interessante, mas porque no pico da minha adolescência ele foi capaz de me motivar para aprender algo maior, algo muito para além do que dizia então Aristóteles ou Platão. E a essência do que é ser um bom professor estava então bem espelhada na sua atitude: o importante para ele era dar o exemplo, mostrar a sua paixão pelo tema e mais do que respostas, oferecer-nos a inquietude das suas admiráveis questões.
No último trimestre de 2010 fui convidado a integrar a equipa Primeira Luz. Fui adotado, como costumam dizer o Pedro e o Nuno. Decidi aceitar e mal sabia o que essa pequena decisão iria fazer pela minha maneira de ver e sentir a fotografia e até mesmo pela minha forma de fotografar.
Antes de ingressar na Primeira Luz já tinha passeado pelas ruas de Lisboa com uma mão cheia de “alunos” à procura de aprender mais sobre esta arte que a tantos apaixona e por certo – espero eu – interessados em ouvir aquilo que eu tinha para dizer. Nesses passeios, quase sempre a dois ou a três, o que mais me transcendia no final das sessões era a forma como a mim próprio me era permitido olhar a fotografia sob o olhar de outra pessoa, alargando dessa forma os meus horizontes fotográficos, e acima de tudo, o prazer de ver os meus “formandos” evoluir na sua própria fotografia e na paixão que demonstravam sob o tema em questão – a fotografia de rua. Perceber nas fotos que me enviavam nas semanas seguintes ao nosso encontro e no contacto que íamos mantendo, o evoluir da sua viagem fotográfica. Esta descoberta partilhada sempre foi muito gratificante para mim.
O abraçar do projeto Primeira Luz fez com que a preparação destas sessões fosse necessariamente levada ainda mais a sério. O número de participantes aumentou e os passeios passaram a workshops. Para se ensinar um tema de forma correta não basta termos umas luzes (ainda que bem fortes) sobre o assunto: é preciso saber dissecá-lo e transmiti-lo de forma clara e segura a quem está ali para aprender. Por essa mesma razão, a minha própria maneira de fotografar também se alterou devido à abordagem que tenho de ter com os meus formandos: passou de uma coisa maioritariamente instintiva para um processo mais metódico. Só assim se pode ensinar a técnica de modo a que todos percebam, só assim se pode explicar o que funciona e o que não funciona numa imagem, pois uma coisa é fazer instintivamente uma fotografia e outra é saber verbalizar o porquê de termos escolhido incluir determinados elementos e o porquê de termos deixado outros de fora. Experimentem explicar a uma pessoa porque é que fizeram determinada foto para perceber o que quero dizer. Quando estamos num workshop não basta dizer “olha, pareceu-me bem esta composição…”.
Para ser um bom professor, principalmente num workshop de fotografia, é preciso saber explicar o que está por detrás do click. É preciso explicar o porquê de ter decidido fazer aquela foto, naquele instante particular, emoldurando aquela realidade e não outra. E é preciso saber fazê-lo com uma mensagem clara e não com vagas aceções. E é neste processo que tem tanto de técnica como de estética que as descobertas se dão, tanto para professor como para aluno. E é esse diálogo, muitas vezes singular com cada um dos participantes, que tanto me apaixona. Isto porque, na minha opinião, um workshop bem-sucedido será sempre aquele que deu algo mais, tanto ao aluno, como ao professor.
Normalmente nos nossos workshops, os participantes procuram duas coisas fundamentais: uns pelejam por dominar a técnica e a câmara fotográfica de modo a conseguirem ilustrar de forma perfeita aquilo que os seus olhos veem; outros procuram libertar-se da simples ilustração da realidade e almejam algo mais: a procura de uma imagem que mostre muito mais do que aquilo que estão a ver. Seja qual for a razão por que estão ali, uma coisa é clara para mim e para os meus companheiros na Primeira Luz: este é um caminho que só pode ser feito com persistência, muita vontade e um sério compromisso. Na Primeira Luz não temos varinhas de condão que transformem qualquer participante naquilo que apenas a experiência e repetidas saídas para o terreno conseguem. Para se passar de iniciado para intermédio e de intermédio para avançado há sempre um longo caminho a percorrer e nunca será num workshop de um ou dois dias que as coisas vão acontecer. Como costumamos dizer em todas as sessões, os nossos workshops são um ponto de partida para uma viagem que esperamos seja longa. E nós estamos disponíveis para acompanhar os nossos alunos nalgumas dessas paragens, caso assim o desejem, para os motivar e fazer correr através da nossa imensurável paixão pela fotografia.
Eu como líder de um espaço de aprendizagem procuro em cada sessão dar a chama que pretende iluminar esse longo caminho. A fotografia não é uma ciência exata. Se fazer fotografia fosse tão simples como somar 3+3 bastaria comprar um bom livro para ficarmos mestres no tema. Mas felizmente, isso não chega. Nenhum livro consegue dizer, por exemplo, de entre as milhares de combinações possíveis, qual a composição que devemos fazer quando estamos diante de uma determinada situação. E é aqui que a ajuda de um formador é insuperável. Através da partilha daquilo que aprendi após inúmeras saídas para o terreno, ensinar a ver torna-se mais fácil e mais intuitivo e é ali, naquela hora e naquele local, que a luz nasce na alma de quem está a aprender. Por vezes basta uma palavra mais sentida ou o apontar para algo que estamos a olhar mas não estamos a ver para a fotografia surgir.
Há no entanto que dar espaço a quem fotografa para que ele ou ela possa maximizar a sua criatividade. É por isso que raramente digo aos participantes para fotografarem isto ou aquilo quando chegamos a um determinado local. Eu prefiro que cada um descubra os elementos que lhe apaixonam e só depois lhe digo como eu os fotografaria. Dar espaço a cada um é muito importante, pois só assim se cultiva a procura por um estilo próprio. Os workshops em que os alunos fazem aquilo que os formadores “mandam”, na minha opinião, não têm qualquer interesse, além de serem altamente redutores. Na Primeira Luz os participantes são livres de ocupar o espaço e de se perderem pelos locais cuidadosamente escolhidos por nós. Se se sentirem perdidos, nós estamos lá para ajudar, mas primeiro têm de tentar por si próprios fazer a imagem, criar a sua própria interpretação. E é nessa descoberta partilhada que também eu descubro um mundo de coisas novas. Muitas vezes dou por mim a meditar “como é que eu nunca pensei nisto… mas que grande foto!”. E o estar aberto a todas estas descobertas é um processo fundamental para quem lidera workshops deste tipo. Afinal, é de arte que estamos a falar.
Outra coisa que não costumo fazer é fotografar durante o workshop. Isto não quer dizer que não tire fotografias. O que quero dizer é que não estou num workshop a fotografar para mim. Sempre me fez confusão as entidades e os formadores que voltam dos workshops com um sem número de imagens, fotografando avidamente durante os workshops e passeios fotográficos. Sei inclusivamente de situações em que se pedem aos participantes que se desviem pois estão a bloquear a visão de quem está a “dar” o workshop. Nos workshops em que sou formador estou 100% dedicado aos meus alunos e as únicas fotografias que tiro é deles em ação ou quando é preciso dar o exemplo… Isso acontece principalmente nos workshops de fotografia de rua onde é preciso quebrar o gelo. Na Primeira Luz acreditamos que quem está ali, a pagar por estar longe da família e dos amigos, a trocar um tempo em que podia estar a fazer outra coisa para estar completamente imerso na fotografia, deve ser retribuído com total dedicação. E é precisamente isso que eu e os meus colegas fazemos.
Em jeito de balanço, gostava de partilhar convosco muitas das memórias que passado uns anos consegui amealhar na Primeira Luz. Desde o primeiro workshop na serra da estrela, num fim de semana de sol maravilhoso a cobrir um manto branco de gélida beleza, à descida às fantásticas grutas de Mira de Aire, num workshop onde a chuva só parou para nós fotografarmos e São Pedro até nos brindou com arco-íris e uma luz matinal como nunca tinha visto a banhar a Serra de Aire. Do primeiro workshop de fotografia de rua da Primeira Luz, onde eu pensava que todos iriam ter “medo” de fotografar pessoas e passada meia hora já andava tudo de máquina colada à cara de quem passa, à ida à cidade Invicta onde passamos momentos fantásticos num grupo que mais parecia uma grande família e que me obrigou a deixar o Porto quase à meia-noite depois de uma bela francesinha… Aos dias de chuva, de sol abrasador, às noites frias passadas junto à praia, à descida à praia da Ursa, à visita à Casa da Insua. Em cada uma dessas memórias estão os nomes de todos aqueles com quem me cruzei, estão as fotos que vi aparecer nas vossas máquinas, as palavras que trocamos sem mais ninguém ouvir, os sorrisos e risos que soltamos. E acima de tudo, está a emoção com que sempre dissemos “até ao próximo workshop”.
Obrigado a todos pela partilha, por me fazerem olhar para a fotografia de forma diferente e por me darem a oportunidade de vos poder mostrar o quanto eu gosto de fotografia e de ensinar tudo aquilo que sei. A minha maior recompensa é e será sempre o continuar da vossa viagem. E tal como o meu professor de Filosofia, espero que um destes dias se lembrem de mim não pelas palavras que trocamos num dos workshops onde estivemos, mas pelas imagens fora de série que cada um de vós consegue sempre criar. Como dizem por aí, uma imagem vale mais que mil palavras e as vossas, não tenho dúvidas, valem mesmo muito mais!
Até breve.
Gostei do teu texto. É Tal como és, cheio de memorias e emoções.
Continua a fazer com a tua fotografia, a tua arte. Continua a desafiar o mundo do Belo . E continua a partilhar … e obrigada!
Não podia estar mais de acordo, este texto maravilhoso que eu já conhecia através do seu interior mexe comigo, é assim que eu encaro tudo na vida. Abraço Luís